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domingo, 20 de fevereiro de 2011

Ganancia

Era uma vez uma formiga. Era uma formiga como outra qualquer, com os seus gostos e preferências, que trabalhava na manutenção dos túneis do formigueiro. Não era a sua ocupação de sonho, mas servia o propósito de prover algum lucro à sua vida. Esse lucro seria maior, não fossem as taxas que tinha que pagar. Era uma taxa para pagar o árduo trabalho da enorme rainha e outra para os ordenados das formigas-soldado. Havia, também, taxas para pagar a manutenção dos túneis e os salários das formigas responsáveis pela boa cobrança das taxas. O resto dos lucros desta trabalhadora formiga eram divididos entre a certificação das suas habilitações para trabalhar nos túneis, a licença para habitar o buraquinho que comprara e a caixa de sapatos que lhe servia de mealheiro, para onde iam os poucos trocaditos que restavam. Em suma, a nossa formiguita levava uma vida frugal e resignada.
Certo dia, trabalhava a nossa formiga na boca de um túnel de ventilação, quando uma enorme cigarra se sentou no chão, de perna cruzada, aí à distância de vinte formigas, e tirou do saco uma guitarra. Sem uma palavra, fez saltar os seus dedos sobre as cordas, produzindo uma alegre melodia que pôs as antenas das formigas ali presentes a dançar. Quando a cigarra parou de tocar, as formigas bateram palmas e pediram mais uma. A cigarra logo se desculpou e queixou de estar cheia de fome, e que tocaria mais uma ou outra música, mas em troca de um pouco de comida. A nossa formiga prontificou-se de imediato a arranjar comida, e um lugar onde passar a noite, se preciso, em troca de música para o resto do dia de trabalho.
A cigarra acabou por ficar uns dias no buraquinho da formiga, a comer às custas dela. Em troca aquele era o cantinho mais animado do formigueiro. A cigarra continuava, mesmo assim, a tocar todos os dias para as trabalhadoras, que se mantinham felizes no trabalho a trautear ao som da guitarra daquele insecto enorme. Quando a cigarra percebeu que tinha clientela, começou a pedir uns trocados por um ou outro pedido específico, e em pouco tempo tinha acumulado algum lucro. A formiga, apercebendo-se disso e já algo cansada de ter um bicho tão grande e desajeitado no seu cantinho, pediu-lhe que contribuísse para a economia da casa; cobrou-lhe uma renda, portanto.
A cigarra, ofendida com a ganância daquela formiga possuidora de uma fortuna em trocos, mantidos longe da sua utilidade social dentro de uma caixa de sapatos, saiu dali para fora. A lata da formiga! Pretender tolher a sua criatividade e espírito artísticos em nome do vil metal! A formiga lá continuou a sua luta diária por mais uns trocos enquanto a cigarra tocava a sua viola pelos mais movimentados recantos do formigueiro, em troca de modestas contribuições. E o negócio corria-lhe bem, tal era a sua mestria na guitarra e invisibilidade nos registos dos cobradores das taxas. Enquanto isso, a rainha que, coitada, era tão grande que nem podia sair da sua sala para ver os seus súbditos, ouvia falar desse insecto voador que encantava as suas filhas, as suas trabalhadoras. Quando as correntes de ar na intricada rede de túneis sopravam de feição, a rainha, mãe de todas as formigas, ainda ouvia a melodia da cigarra, mas não a entendia. Isto devia-se, decerto, à distorção e interferência da distância. Ordenou, então, a rainha, que trouxessem o músico à sua real presença. Foram precisas obras de alargamento dos túneis, para que o inchado insecto pudesse comparecer perante a figura maternal de todas as formigas, mas as industriosas trabalhadoras não deixaram mal a sua mãe. E assim a cigarra foi tocar para a rainha.A cigarra tocou o seu melhor mas a pesada formiga não ficou lá muito convencida. Esperto como era, o volumoso insecto percebeu o que a anafada rainha queria e tocou uma marcha militar. A mãe de todas as formigas ficou de peito inchado e rejubilou! Que música maravilhosa! As trabalhadoras deviam ouvir isto, e não aquilo que a cigarra lhes andava a tocar antes. E assim a rainha decidiu-se a tomar em mãos a educação musical das suas filhas e súbditas. Tinha negligenciado as suas obrigações na educação cultural daquela massa de formigas ignorantes há já demasiado tempo.
Foi então estipulado que se atribuísse um salário à cigarra, que tocaria marchas em honra da rainha para animar a labuta diária das trabalhadoras, e que se cobrasse uma nova taxa às formigas para suportar esse salário. Era justo, uma vez que as beneficiárias de tal medida eram as formigas.
E foi assim que a nossa formiga ficou sem trocados para a caixa, nem para pagar à cigarra que tocasse o que ela realmente queria ouvir...
Agora vejam como acontece em vossas vidas e a repercussão que tem nos que estão a vossa volta e no futuro real.

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